terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

TRÊS OUTROS POEMAS COM A PALAVRA: VENTO


Como o vento, as palavras vêm


Escrevo. E ouço me dizerem as palavras
que nada do que está escrito aqui é meu.
As palavras me tomam nessa noite.
Como as sementes de um pé de amoras
elas me chegam de longe com o vento.
As palavras que eu digo, que eu escrevo,
não são minhas letras e palavras
e nem as frases e idéias que penso serem minhas.
Elas me chegam, brotam na terra de que sou,
como a planta semeada se desvela.
Nada do que está escrito aqui é meu.
Nada do que escrevi a vida inteira foi meu.
As palavras que dizemos e as que ouvimos
não são  nossas em momento algum
e se ilude aquele que escreve e pensa: “isto é meu!”.
Elas chegam com o vento, como o vento.
Vêm de longe, de um onde não sabemos,
e por outros rostos foram ditas e em outras vozes
sob a sombra de outras árvores e outros frutos.
E outros ouvidos as ouviram em outras línguas.
Um vento de passagem as recolheu, um vento
como o que agora venta aqui. Vem e escuta!
Em outra noite como agora, em um lugar distante
um outro vento as recolheu nos braços, safra de letras.
e as palavras que pensamos nossas, vieram nele.
Terão cruzado o calor de algum deserto.
e povos beduínos as terão ouvido antes de nós
as palavras que cantaram e não são nossas.
Terão atravessado um mar, um oceano,
guiadas talvez por uma estrela
que de longe traduziu letras, palavras
e as entoou antes de nós, bem antes.
E com o vento chegaram aqui as palavras
e por um instante, durante um breve tempo
do passar do sopro de um vento errante
elas me habitam como quem, cansado
encontra uma tenda ou a sombra de outra árvore.
Um momento efêmero, porque logo  tomam alento
e em um outro vento viajam... vão embora
e pousam em um lugar longe, de outras línguas.
E passaram por nós, e as ouvimos e falamos,
e algumas vezes as retemos num papel
imaginando sair de nós o que apenas nos visita.
E aqui ficamos enquanto elas nos deixam.
E o que chamamos, sem saber,  “silêncio”
é apenas o seu ir embora e nos deixar
até que outro vento passe e em nós ressoe
um poema,um pensar, uma canção.
Palavras que repousam em nós o seu minuto.
Em nós que  sonhamos que ouvimos
Vindo dos rios de nosso corpo o que flui no tempo,
em sabermos que aquele que  escreve
é  apenas um alguém um pouco mais atento ao vento.
Ele escreve as palavras que o possuem,
mas quem? Quem decifra a voz do vento?



Era uma tarde, o vento




Era uma tarde e era quase a noite,
no horizonte houve um traço de Van Gogh:
um tom de laranja e um outro cor de barro.
E eu sonhava ir indo por ali, sozinho.
Como quem deixa as uvas e colhe o vento.
A noite veio vindo como quem a pé
e acendeu entre a Lua e o Cruzeiro
um carreiro de velas.  E pareceu até
que o breu da noite clareia mais que o dia
por um instante que fosse, um momento.
E sobre o manto do mar Órion molha as mãos
e quem neste vôo vela a noite como eu,
desperto e aceso, se espanta e se pergunta:
para onde foi o que da tarde havia?
E quem chegou e quando? Vindo de onde?
Trazido de qual nuvem? De qual vento?
De que lugar que longe há, e eu não sabia?


Van Gogh: outono


O berrante, o vento

Ouves este som? Pensas que é o vento?
Ouve de novo! Escuta e vê. Não venta.
E na volta da estrada é um som dolente
quem trás até aqui três notas de um berrante.
Alguém que não o vento o sopra. Ouves? Quem?
É um boiadeiro quem canta e, como o vento
fala a ele e aos bois, e a nós e a deus,
e a todos embala como se fosse um berço
o sertão que entanto é pedra e fogo aceso.

Berrante, o artefato de sopro mais humilde
e o som mais igual ao Om de Krishna.
O mais deserdado sopro, o mais sem arte.
Não há lugar para ele entre violas
e sanfonas e tambores  das folias
e dos bailes que embalam alegrias
entre um dia vinte e cinco e um dia seis.
Ele sonha ser apenas um mugido,
um como o vento que de um chifre sai,
pois é ao gado que viaja que ele fala.
Não o ouves? E pensas que é o vento.
tu que vens de longe e aqui te esqueces.
Escuta, como em missa, como em prece.
Pastor de bois, o boiadeiro quando sopra
O berrante que o gado ouve e sente,
é um pouco como deus, senhor do vento.


Portinari: Balão no Céu


Algumas vezes – e elas são muitas – rabisco os meus poemas em folhas de fim de agendas e de cadernos, ou nas partes em branco dos livros de poesias que me acompanham entre viagens. E alguns ficam perdidos por alguns dias... ou por muitos anos.
Assim, neste final de 2007 encontrei três deles que quero partilhar com vocês. Os dois primeiros estavam rabiscados em uma caderneta, em meio a anotações de escritos a respeito da organização de grupos domésticos nas aldeias da Galícia. Notas para um livro inacabável chamado A Crônica de Oms, que um dia espero concluir. Como gosto de indicar local, data e situação de meus rabiscos, debaixo do primeiro está escrito: “Vôo Sampa/Madrid, saindo do Brasil” (sem data). E no segundo anotei: “sobre o Atlântico” (onde?). O último foi rabiscado na parte em branco das páginas 110 e 111, do livro, Poesias, onde Salvatore Quasimodo (um poeta que eu leio e releio sem cessar) escreveu o poema: Que desejas, pastor do ar?

Carlos Rodrigues Brandão
Um dia depois do Natal em 2007

ALGUNS POEMAS DE RIOS AVES E MARES


ALGUNS POEMAS DE RIOS AVES E MARES


Três aves sobre o Sena

As luzes do barco dos turistas
clareiam de repente o lenço branco
do vôo de três aves sobre o Sena.
Os turistas do barco que navega o rio
olham com espanto as luzes da Torre Eiffel.
Fazem poses para fotos entre eles e a torre
e festejam o raro estarem ali àquela hora
quando é tão frio e escuro o mês de março.
As aves claras se assustam e volteiam alto
e saem depressa das luzes e da cena.
Quem terá visto por um breve momento,
o voar de fada de três aves sobre o Sena?


Uma Gaivota no mar em Honfleur

O sino de uma igreja inteira de madeiras
toca as doze horas,  mas em nada atrapalha
o suave pouso de uma gaivota na água
e o seu deixar-se estar ali, apenas,
como  quem vem de muito longe
e agora chegou, e pousa e não nada
e nem voa e nem tem pressa alguma.
Aos que passam pelas calçadas acima
na enseada mansa do mar de Honfleur
a gaivota na água, imóvel como um monge
ensina segredos de ser zen:
estar ali como quem já foi e ouvir o vento
e deixar-se, sem mover, ir-se com o vento.


Uma cegonha em Ponferrada

No alto de uma alta chaminé
a cegonha fez o seu ninho de gravetos
como uma casa às avessas sobre a casa
onde os homens se escondem do frio e do tempo.
De pé, como quem vigia o mundo
ela espera o sol da Primavera.
Passarinhos de uma cor escura
voejam ao redor do ninho da cegonha
e nos seus ocos abaixo de seus pés
fazem os seus pequenos ninhos.
A cegonha os acolhe sem cuidados
e sobre a silenciosa casa  dos homens
de janelas fechadas e cortinas
uma comunidade de cantos e de asas
acena do alto de uma chaminé sem fogos
ao passar apressado de um trem sem rumos.


Inverno  de 2008
Carlos Rodrigues Brandão

FOLHAS   AO   VENTO
terceira viagem


Diálogo com Rainer Maria Rilke às  voltas com os Sonetos a Orfeu
e poeticamente fora de ordem. Diálogo com outros poetas.


12

Deseja ser outro: transformar-se. Que a chama te entusiasme
Onde algo te escape e seja o sinal da raiz  da transformação.
O espírito da criação, o mestre da Terra
No desejo da imagem ama, mais que tudo, o ponto da mudança.

O que está preso no que permanece já é da pedra e já é pedra,
Acaso se crê seguro, abrigado nas mãos de uma queda invisível?
Espera: a dureza mais densa e amarga adverte ao que dura
E, então, é aí que o martelo ausente ensaia o gesto e quebra.

Aquele que jorra como a fonte, o reconhecimento o acolha
E o guia feliz de ser através da criação pacificada
Ele, que como a fonte das origens se revê e recomeça a cada dia.

Todo lugar de ventura é filho ou filho da filha da ruptura
E é através dela que eles, perplexos, atravessam. E Dafne como raízes,
Como o loureiro, deseja que tu te transformes em vento.









14

Veja as flores e o ser tão fiel à terra
A quem damos um destino à beira do destino.
Mas, quem saberá? Quando elas pranteiam o morrer
Somos nós aqueles por quem elas choram?

Tua deseja voar. Com peso nos pés  andamos no mundo.
Pesamos sobre tudo e com o pesar nos encantamos.
Ah! Que senhores da fartura não somos nós para tudo
Só porque há em tudo a fortuna de nossa distante infância.

Flores. Se alguém as quisesse  para o silêncio do sono e nele dormisse
Profundamente, entre as coisas – como então amanheceria leve
E diferente num outro dia, ao chegar a uma tal profundidade  do sentir

Ou talvez por lá ficasse. E as flores floresceriam de louvar
Aquele que se converteu e agora parece haver aprendido a ser
Como todas elas, as irmãs silenciosas dos ventos do prado.




Hilda Doolittle

Amei teu corpo, ele disse
e, “ah, esse sofrer, essa falta
e a mão afaga a pele de outra mão
e dói no rosto o sol
e dói no outono a minha dor
porque todo o fruto amarga o gosto
da boca sem teu beijo, amor”.

Onde? Quando?


Rilke
Fragmento da Elegia de Duino - nove

Juizes, ah vós, de grandes togas de cor escura
Não vos vanglorieis da tortura esquecida agora,
e nem do não afastar mais os corpos com panos e atar a dor ao pescoço.
Nenhum coração algum dia foi mais grande  apenas
porque um esgar de amor, um espasmo de doçura
nos desarma o corpo com maior suavidade.

O que foi conquistado no fluir do tempo, o cadafalso
trás outra vez à cena, tal como fazem as crianças com os brinquedos
ganhos na alegria do aniversário passado há sete dias.

A doçura chegaria diferente. Ela viria no poder
e lançaria trovões maiores para todos os lados
assim como são os deuses. Sabes? Os deuses...
Mais ainda do que um grande vento
sobre as velas dos grandes navios.

Não menos. Não menos do que a lua e a secreta intuição
Que nos conquista no íntimo, em silêncio
Como um filho de um amor sem fim, brincando no meio do silêncio.

Paris, 8 de novembro de 2006





T. S. Eliot


Rumo ao mar eu os vejo, cavalgando ondas

Penteando as suas longas crinas brancas e encrespadas
Quando o vôo do vento revolve
águas negras e águas brancas.
Nós dois no abandono ficamos
Nas mansões  do mar, sua morada
Entre ondinas e véus de algas claras e cor de púrpura.

Até quando outras vozes de homens nos despertem

E, então, morreremos naufragados.

Tradução livre e criativa da penúltima páginas do
A canção de amor e morte de J. Alfred Prufrock
De T.S. Eliot





FOLHAS AO VENTO

primeira viagem


Menino de beira-mar, poucas imagens restaram por trás dos meus olhos tão belas, tão simbolicamente evocativas, como a figura de um veleiro branco que alça velas, levanta a âncora e sai mar afora, em busca de um lugar qualquer... longe, muito longe.

Viajei pouco em barcos assim, mas dediquei a eles alguns dos poemas de que mais gosto. Velas e, sobretudo, o vento, o grande viajeiro do planeta Terra estão presentes em escritos meus de diferentes e distantes anos. Assim como dediquei outros poemas aos trens, barcos de terra adentro, quando comecei a dar as costas aos mares de minha infância e juventude e aprendi a viajar em trens, mas não só neles, entre terras que vão de mar-afora a sertões-adentro.

Foi assim que me vi percorrendo o caminho oposto ao de dois mineiros de “terras adentro”, cujos escritos de prosa e poesia me acompanham da juventude marinha até os dias de agora: João Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. Os dois, já adultos e escritores, vieram dos fundos de Minas para as beiras do mar de Copacabana, onde nasci.

Quando dei conta de mim, casei com mulher goiana e tomei o rumo oposto. Não faz muito tempo cruzei com uma imagem de Drummond moldada em bronze, sentado em um dos bancos da calçada de beira-praia, olhando o mundo e o mar.


Mas aqui não são velas de barco ou de sonho. São folhas. Folhas escritas com alguma poesia, numeradas como em viagens: da primeira até... qual? Folhas escritas e soltas ao vento.

Passei quase toda a minha vida escrevendo. Desde menino e mau aluno nos colégios do Rio de Janeiro, boa parte de minhas então raras horas de solidão era dedicada a escrever. Escrevi muito e sempre com um estranho costume: raramente leio depois o que eu mesmo escrevi. Menos a poesia. Claro, leio bem mais poemas de outras e outros poetas do que os meus. E este é um hábito que recomendo fortemente.  Agora, aos setenta anos, escrevo ainda. Ainda vivo entre projetos e relatórios de pesquisa em antropologia. Agora mesmo um novo projeto de estudos, ao longo do rio São Francisco. Ainda escrevo – e desde um distante 1963 – a respeito de cultura popular e de educação. Tarde, mas ainda a tempo, comecei também a escrever sobre a vida, a natureza, os cuidados com o meio ambiente, e sobre como poderíamos nos unir para vivermos uma vida mais simples e solidária.

Reconheço que circulam entre nós, em livros, artigos e mensagens eletrônicas, muitos escritos excelentes a respeito de “tudo isto”. E esta é uma razão pela qual resolvi participar destas “teias e redes” através da poesia.

Sei que entre tantas mensagens e escritos, é sempre a ela que devemos voltar para reencontrar os momentos mais profundos do que o espírito humano cria com o coração, a mente e as palavras.

Os poemas das séries de FOLHAS AO VENTO não são todos e nem são sempre os meus. Afinal, sou apenas uma folha entre tantas e tantas. E sei que muitas (muitas mesmo!) voaram bem mais alto e longe do que eu. Aqui estarão poemas traduzidos livremente; poemas que escrevi em diálogo com poetas que amo... e  poemas meus. 




Aqui começa a série das FOLHAS AO VENTO. Como as que virão depois, ela atira poemas ao mar, ao vento  e à vida, a  espera de que alguém – você, por exemplo - os encontre em alguma estrada ou esquina, mesmo que dos mapas da internet.

Encontre, leia ou simplesmente olhe, e faça a si mesmo(a) ou ao mundo as perguntas que os poetas também fazem, mesmo sabendo que para quase todas, as respostas não existem. Ou, quando existem são, como a vida, respostas difíceis de se perguntar.

Esta é uma primeira edição – espero que não a “única” – de FOLHAS AO VENTO. Reuni aqui poemas meus e de outros poetas. Quase sempre poetas que valem como mestres e que leio e releio sempre que posso voltar a eles. Há, portanto, poemas de outros poetas traduzidos livremente por mim.
As pequenas notas ao final indicam um velho costume. Ao ler poemas em seus livros, gosto de reescrevê-lo ora em algum espaço em branco da própria folha, ora em alguma folha em branco do livro. Não é raro que um poema que me maravilhe inspire em mim um outro. Nunca igual ao que acabei de ler. Não raro, sequer semelhante. Mas um poema de momento que não existiria se não fosse  a leitura de um outro.
Por isso em alguns casos me lembrei de indicar ao final o lugar onde o original foi escrito à mão  - ainda há quem “escreva a mão” -  a data e. quando lembrado, o lugar onde eu estava quando li e escrevi. Algumas frases com interrogantes sugerem que quando revi o que escrevi, já não lembrava mais todos os dados.
Eis porque a esta primeira coletânea dei o nome de: O VIZINHO POETA.
Esta primeira edição de FOLHAS AO VENTO  foi iniciada  em uma casa dentro da Mata Atlântica, diante do mar da praia da “Comunidade de Picinguaba”, no Litoral Norte de São Paulo. Eram os últimos quatro dias do ano de dois mil e nove. Ao longe alguns barcos de pescadores – vários a motor, raros a vela – saem da beira praia em direção ao mar. Dois veleiros brancos balançam de leve num mar de baia sem ondas.
Esta “primeira edição” foi relida e revista em Campinas, poucos dias depois de eu descobrir (sem sustos) que já tenho setenta anos.

Boa leitura! Boa viagem!
Carlos Rodrigues Brandão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 










 

A pobreza


Ai, não queres,
te assusta
a  pobreza,

não desejas
ir com sapatos rotos ao mercado
e voltar de lá com o velho vestido.

Amor, não amamos
como querem os ricos,
a miséria. Somos nós
quem  haverá de extirpá-la como um dente ruim
que desde sempre mordeu o coração do homem.

Mas eu não quero
Que temas a pobreza.
Se por minha culpa ela chega à tua morada,
se a pobreza expulsa
os teus sapatos dourados,
sue ela não expulse o teu sorriso que é o pão de minha vida.
Se não podes pagar o aluguel
sai em busca do trabalho com um passo orgulhoso,
e pensa, amor, que eu te estou vendo
e juntos somos a maior riqueza
que jamais se viu reunida sobre a Terra.

Pablo Neruda

Los versos Del Capitan

Editorial Oveja Negra  Bogotá  Colombia

Pg. 66




Um deus sonhado


Desde um mundo que ignoro

tu procedes ardente de beleza
e eu me clareio e há  a luz porque eu sei
que existe tamanha formosura. E tu vens
de frente. Vens, e chegas aqui como a folha
cai da árvore e voa até mim e embala o vento.
O vento como o Sol, como um de seus raios
Que és. Que ele é e Sol me envia.
E então eu digo como um som, uma palavra:
que ele sou eu, e sou
e digo a ti que venhas, Deus
e por um momento
e sonhas, como eu, minha palavra.

Angel Crespo

De que livro? De onde?
Foz, na Galícia, janeiro de 1997
(debaixo de uma tempestade boreal)















o mundo para além das palavras


Escuta, há dentro deste mundo um outro mundo
Impermeável às nossas palavras.
Nele a vida não teme a vinda da morte
E nem a primavera dá lugar ao outono.

Velhas histórias e antigas lendas surgem de telhados e paredes
E mesmo as pedras e as árvores exalam a poesia.
Aqui a coruja da noite transforma-se no colibri
E o lobo gosta de ser um belo pastor.

Para que a paisagem mude à tua volta
Basta mudares o que sentes
E se queres vagar por entre estes cenários
Basta que digas a ti mesma o teu desejo.

Fixa o olhar no deserto dos espinhos
E vê como logo ele é um jardim florido.
Vês aquele bloco duro de pedra no chão?
Olha bem: ele se move e vira um diamante.

Lave bem as tuas mãos e o teu rosto
Nas águas puras deste lugar
Porque aqui os que te amam te alimentam.
E aqui é o lugar onde todo o ser gera um anjo
E quando um deles retorna com Deus  aos céus
Os que se foram retornam à vida.

Já vistes por certo as árvores crescendo sobre a terra,
Mas quem já viu um Paraíso quando ele nasce?
Vistes também as águas de rios e de mares
Mas quem já viu nascerem de uma só gota de água
Tantos e tantos seres tão cheios de vida?

Quem conseguiria imaginar esta Morada,
Este Céu e este Jardim do Paraíso?
Tu, amiga, que agora lês este poema,
Lê tua alma e traduz o que agora sabes.
E vai, e conta a todos o que aprendestes
Sobre este lugar abençoado.

Rumi
Sede de Deus – orações do judaísmo, cristianismo e islã
Editora VOZES – Petrópolis, página 180.





Inventário

Secas, sem ares e vivas da vida
o que é igual ao que não é azula
e no escuro do escuro do que existe
cresce no altar do tempo a ara do tempo
e sobre o solo da alma a água apruma
o seu se ir de rio em rio caminho afora
e é tarde e chove e cai um raio e um outro
acende o céu e o céu aclara a noite clara
e é cada estrela como a espera de outra
e o sol da luz lembra ao olhar do homem
que uma vela só clareia o mundo.

Walace Stevens
(onde? quando?)




A Lua

Pensava que o poeta é aquele homem
que como o áureo Adão do Paraíso
impõe a cada coisa o seu preciso,
verdadeiro e não sabido nome.

Sei que a Lua ou a palavra Lua
é uma  letra que foi criada para
a escritura misteriosa dessa rara
coisa que nós somos: numerosa e uma*

* coisa que somos: minha alma e a sua
 (para que fique mais de acordo, em Português)

Jorge Luis Borges
Pg. 133 (de onde?)



E como aquela noite nunca houve
quando a luz da lua como vinho se bebia
e no fim da  tarde ela veio leve e fria
quando em tudo o arco-íris das nuvens
desenhava  as sete cores de que o sol
fiava a roupa do atardecer e se cobria
de vermelho e de roxo,  de azul e cinza
e de tristeza e solidão, paz e alegria.

Poema meu
(com Borges?)


Neruda


Tenho uma doença

Que me rói
E não verei meu planeta
Convertido em rosa.
Trago em mim uma morte antecipada
E de meu país ao Sul
Não verei a hora da festa,
A alegria na rua.
Tenho uma tristeza que me amarga
E se me perguntarem porque
Direi que não,
E que o silêncio da lua
Fale por mim e julgue.

Na página 17 de defeitos escolhidos e 2000
Pablo Neruda


Pouso

Inadvertidamente
como um colibri
que enfim pousa.

Meu poema escrito em alguma página de inéditos e dispersos,
de Ana Cristina César








Arte poética


Olhar o rio feito de tempo e água
e recordar que o tempo é um outro rio.
Saber que perdemos como o rio
o que os rostos pensam como água.

Sentir que a vigília é o outro sonho
que sonha não sonhar, e que a morte
que tanto teme a nossa carne é essa morte
de cada noite, assim chamada: sono.

Ver em cada dia ou ano um símbolo
dos dias do homem e de seus anos
e converter o ultraje de seus tempos
em uma música, um rumor e um símbolo.

Ver na morte um sono e no ocaso
um  ouro triste, e assim é a poesia
que é pobre e imortal. E a poesia
volta como a aurora volta e volta o ocaso.

Ás vezes, nas tardes uma casa
nos olha desde o fundo de um espelho.
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria casa.







Contam que Ulisses, cansado de prodígios
chorou de amor ao divisar sua Ítaca
de verde eternidade, não de prodígios.
Verde e humilde, a arte é essa Ítaca

e é também um rio interminável
que passa e fica e é cristal de um igual
Heráclito inconstante, que é o mesmo e é outro
assim como um outro rio interminável.


Jorge Luis Borges
(claro) onde?





(de Borges)

Será (me digo então) que de algum modo
secreto e suficiente a alma sabe
que é imortal e que seu vasto e grave
círculo abarca tudo e tudo pode
e para além deste afã e deste verso
me aguarda inesgotável o universo.

Composición escrita em um ejemplar de
La Gesta de Beowulf – 225